Os sambas-enredo contavam o enredo numa história com melodia. O que eles, os sambas-enredo de hoje, são? São uma série de vírgulas separando idéias soltas e palavras também soltas como se fossem colocadas ali para que, filosoficamente, os espectadores e ouvintes decifrem o mistério sobre o que representam no enredo. Compare a letra do samba-enredo do Império Serrano reeditado e qualquer outra letra de qualquer outro samba-enredo deste ano. A diferença é impressionante.
Assim como a maioria fiquei surpreso com a quantidade de notas baixas dadas ao Império Serrano. Deixo claro que sou portelense, mas jamais desprezaria um desfile de uma escola tradicional que levou para a avenida um samba que foi cantado por todos, até mesmo quando, em casa, vendo o desfile pela televisão.
Os critérios para avaliação foram apresentados pelos organizadores e você pode baixar para tentar entender os motivos pelos quais uma escola é avaliada. Talvez, assim, seja possível compreender qual a diferença de notas dadas por três jurados e um quarto jurado que tirou 0,1 da nota máxima de uma bateria, pois, imagino que achou que, quem sabe, a baqueta de tamborim na terceira fila do naipe desse instrumento era curta demais visto lá da cabine. Ou será que não gostou da volta do naipe de frigideiras entre os instrumentos?
Eu sou do tempo em que os desfiles eram muito mais a apresentação de uma comunidade e raros elementos de fora participavam. A elite pouco participava. Havia uma grã-fina que saía na Portela, uma cantora da Jovem Guarda que saía na Mangueira ao lado do passista Gargalhada e mais uma meia dúzia de gatos pingados de origem diversa. Hoje, ao contrário, a tevê que detém o direito de transmissão preocupa-se muito mais em mostrar seus funcionários do departamento de dramaturgia e bijuterias tidas como efeitos especiais do que o samba no pé.
Também sou do tempo em que cada escola trazia em todas as fantasias as cores de sua bandeira e havia mais passistas sambistas do que rainhas de bateria que sambam ao estilo gringo, só faltando apontar os dedinhos para o alto. Por falar nisso, lembrei da crônica do Dapieve – botafoguense de quatro costados –, no Segundo Caderno do O Globo, ao citar seu amigo Tárik (de Souza), ao falar sobre as “rainhas de bateria” que, hoje, desfilam tendo em mente a estética do travesti. Parecem homens de tão marombadas que são. Salvo raríssimas exceções, algumas trazem o corpo com as curvas femininas que, nós homens, tanto apreciamos desde que começamos a perder quase todos os pelos do corpo ao descermos das árvores.
Também me pergunto: em que lugares se escondem aquelas deusas de ébano e mulatas nos outros 361 dias do ano? Só pode ser em viveiros. Elas não são vistas durante o resto do ano andando nas ruas indo ao banco pagar conta, indo ao cinema e bares, supermercado… Este mistério é mais bem guardado que o terceiro segredo de Fátima que até já foi revelado.
Recebi uma resposta do Michell Niero, da revista eletrônica O Patifúndio, que trata de temas sobre o mundo lusófono, no artigo sobre a apuração das escolas de samba dos grupos B, C, D e E que transcrevo abaixo:
Assim como no futebol, hoje em dia eu valorizo muito mais as divisões de acesso que a elite. A elite é uma indústria, recebe verba de tudo quando é lugar (inclusive, alguns bem suspeitos), é penduricalho de globais e tudo mais. Nas divisões de acesso é a comunidade mesmo suando a camisa e sendo os protagonistas do seu próprio carnaval. É muito mais bonito e humano que essa grande máquina que virou o carnaval televisado.
O pensamento é o mesmo que motivou este artigo: a essência do carnaval de escolas de samba. Esta essência não deixa de ser encontrada no grupo que congrega a chamada elite, só que em menor intensidade do que nos grupos de acesso. Não é uma apresentação para a televisão e muito menos para os turistas. É, antes disso, a consolidação de um sentido de comunidade que cada escola de samba concretiza nesses grupos de acesso. Lógico que todas almejam chegar à elite, mesmo que seja para subir e descer logo em seguida. Diria que há muito mais emoção e paixão. Não que deixe de haver na elite, mas me parece mais sincera quando lá em baixo.
ps. Mais um ano de fila para a Portela.