Até já estou vendo o cenário: a partir do primeiro minuto do primeiro dia de 2009, o Brasil será um pedaço da França. Sim, meus amigos, ano que vem será o Ano da França por aqui. E olha que eles tentaram fundar uma França Antártica ali na enseada de Botafogo e foram expulsos pelo bravo povo lusitano que chegou aqui primeiro e já foi logo dizendo que “em se plantando a terra tudo dá” e nada de olho grande nas índias que, segundo o escrivão da frota cabralina, “viviam com suas vergonhas de fora”.
Você acha que Brasil e França não tem nada a ver? Ah, sim… entendo. Nós adoramos uma Lacanagem(¹). Tomou bronca dos filhos de Asterix devido a vexaminosa ajeitada no meião, né? Pois é… Je aussi. Mas não tem nada não. Eles sempre tiveram uma certa adoração pelo que acontece aqui no lado de baixo da linha do Equador, como aquela idéia meio furada do Bom Selvagem, que o Rousseau propagava aos quatro ventos; e nós, em contrapartida, absorvemos um tantão de sua cultura. Basta ir à rua e olhar uma vitrine. Percebeu? É “vitrine”, uma palavra francesa. Que est-ce que c’est? Se você mora no Rio de Janeiro, dê um passeio pela Avenida Rio Branco, a mais francesa rua do Brasil. O Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional e a Escola Nacional de Belas Artes são prédios, construções, fortemente inspiradas no neoclassicismo francês. Até aquele baixinho que serve estereótipo para todo doido de desenho animado teve importância aqui nestas plagas tupiniquins. Se não fosse por ele, a Família Real Portuguesa não teria dados nos calos sem olhar pra trás em 1808.
Não sei se ainda é válida a afirmação, mas parece que a língua oficial do Itamaraty é o Francês, a língua da diplomacia. Pare seu carro na garagem e certifique-se que tem uma letra “m” na palavra “garage”. E não adianta pronunciar tal qual os comedores de rotidógui. A palavra é francesa, oui?
E como eu já falei lá em cima, vai ser um festival de francesismo. Não haverá escola de samba que se preze que não trará no enredo alguma alusão aos queijos, vinhos, Torre Eiffel, Asterix, Obelix e se bobear, a Marselhesa será levada em ritmo de samba em qualquer esquina. Coisa do tipo. Alózanfan de la patri! Que em brasileiro quer dizer: Vamos lá, rapaziada! Só não garanto que Zidane e o gnomo que um dia foi o inimigo público número 1 dos brasileiros, um tal de Alain Prost, sejam convidados para a festa. Aqui, um parêntese: Nós somos muito cordiais mesmo. Certa vez, numa comemoração de não sei o que sobre o Maracanã, alguém teve a idéia de jerico de convidar o Ghiggia, aquele ponta uruguaio que fez o Brasil inteiro morrer um pouquinho. Pediram ao Nilton Santos, a enciclopédia do futebol, que na Copa de 50 estava no banco, para recebê-lo e dar as boas-vindas. Não é preciso dizer que a mãe do uruguaio foi “elogiada” na resposta negativa a essa tresloucada idéia. “Eu lá vou apertar a mão desse f…”?
Certamente vai ter Richelieu de destaque em alto de carro alegórico e a fantasia será elaborada com papel de embrulho. Ora, ele não foi a eminência parda? Também haverá um carro alegórico com uma enorme banheira para mostrar que Luís XIV, que dizia “L´Etat c´est moi” e se julgava o Rei-Sol, tomará o seu terceiro banho somando vida e pós-vida. Não sabe? Só tomou dois banhos desde o dia em que viu a luz do Sol pela primeira vez até o dia em que bateu as botas. Alas inteiras virão fantasiadas de O Espírito das Leis e uma ala do PT virá declamando trechos do Contrato Social. O carro abre alas terá um baita estandarte avec La Déclaration des droits de l’homme et du citoyen. Adivinhe qual será o estribilho de alguns sambas? Não faz a menor idéia? Muito simples… LIBERTÉ! EGALITÉ! FRATERNITÉ! Ou, quem sabe, uma letra de samba-enredo assim: Lá nas Malvinas,/o Gardel quase botou a Rainha da Inglaterra pra correr/Mandou um monte de Exocet/Um monte de Exocet… Olha o Exocet aí, gente!
Vai ser muito bacana ouvir a Sapucaí inteira berrando estas palavras de ordem e cantando sambas dans le français. Pode até ser que alguma bicha mais afoita queira vir de Maria Antonieta comendo brioches, doida pra colocar seu pescocinho na guilhotina e ter sua cabeça rolando pela Sapucaí. Vai ser a glóóóóória!
E zefiní!
_________
(¹) – Nos anos 80, a psicanálise ainda rendia polêmicas exaltadas nos jornais, como a que opôs Eduardo Mascarenhas e José Guilherme Merquior, que cunhou o termo “lacanagem” para definir a obra de Lacan. O senhor acha que o tema ainda hoje suscita oposições tão acirradas?
Mezan: Às vezes, sim: uma destas polêmicas foi a pergunta que você fez no começo. Ela implica a idéia de que a psicanálise se situa em algum ponto do gradiente que vai do antiquado ao charlatanesco, aquela idéia de que hoje existem coisas muito melhores, mais eficientes, para tratar os pacientes. Ora, desde os tempos de Freud tem sido assim. Acho que hoje essa crença tem mais peso nos países de língua inglesa. Dada a importância cultural desses países, a idéia acaba se difundindo. Há críticas de uma banalidade e de uma superficialidade desconcertantes. (Renato Mezan em entrevista concedida à Revista Trópico)