John Donne – Elegia

Ser católico na Inglaterra dos séculos XVI e XVII não era algo lá muito recomendável. Henrique VIII, um rei meio estranho e que teve como um dos esportes preferidos trocar de esposas, numa destas trocas de coadjuvante na cama encrencou com o Papa só porque este não quis lhe conceder o direito de se divorciar. Sendo assim, resolveu fundar a sua própria igreja, onde ele seria o chefe da mesma. Surgiu, então, a Igreja Anglicana. O que se seguiu foi um misto de desconfiança e perseguição. Tudo bem, tudo bem… Sempre haverá perseguições religiosas. Basta apenas que um determinado grupo religioso se instaure no poder.

Como a época era de Reformas Religosas que pipocavam por toda Europa, como dito acima, era necessário muito jogo de cintura para não perder a cabeça ou virar churrasco. E foi neste meio que surgiu um dos maiores poetas que já pisaram neste mundo de Deus. Trata-se de John Donne.

John Donne

Nascido no seio de uma família católica nesta época, mas que desde cedo teve que se virar sem o pai, que morreu durante sua infância, foi educado em uma escola jesuítica. Posteriormente estudou em Harvard e Cambridge. Teve um irmão morto na prisão, pois acolhera um padre condenado em sua casa. Questionou sua fé por conta disto. Foi um, digamos, boêmio que gastou a herança deixada pelos pais esbanjando dinheiro em farras, mulheres e viagens.

Casou-se com a sobrinha de seu patrão, que estava com 17 anos e isto foi a sua derrocada. Casou secretamente e foi preso! Tempos depois seu casamento foi reconhecido e tiveram 20 filhos, sendo que sua esposa morreu no parto deste vigésimo filho.

Incompreendido em sua própria época e esquecido por quase trezentos anos, John Donne ressurge como uma voz do nosso tempo, com angústias existenciais que pouco diferem das que afligem o homem contemporâneo, e com técnicas audaciosas, em grande parte incorporadas à poesia moderna.

Ao transfomar emoções religiosas numa poesia metafísica de rara beleza e profundidade, Donne seduz, comove – e faz pensar. Autores como T.S. Eliot jamais negaram a influência desse extraordinário contemporâneo de Shakespeare. Ernest Hemingway foi buscar na sua prosa o título para o romance Por Quem os Sinos Dobram.

Aqui no Brasil, Augusto de Campos traduziu o poema Elegia XIX: Indo para a Cama, que teve colocada uma belíssima melodia por Péricles Cavalcanti e gravada por Caetano Veloso no LP Cinema Transcedental. O texto foi reduzido, é claro, para caber no tempo de uma canção. Infelizmente, houve uma terrível gravação feita por uma antiga jogadora de basquete que acha que é cantora. Também apresento o poema A Pulga, no qual ele, John Donne, pede desesperadamente para fazer amor com uma dama. É interessantíssimo ver como ele faz de uma simples pulga o mote para dizer a ela, dama, que a quer.

Abaixo estão as duas versões de Elegia:

Elegia (Augusto de Campos, Péricles Cavalcanti) *a música está na coluna ao lado em slides. Clique para baixar e ouvir em seu computador

Deixa que minha mão errante adentre
Em cima, em baixo, entre
Minha América, minha terra à vista
Reino de paz se um homem só a conquista
Minha mina preciosa, meu império
Feliz de quem penetre o teu mistério
Liberto-me ficando teu escravo
Onde cai minha mão, meu selo gravo
Nudez total: todo prazer provém do corpo
(Como a alma sem corpo) sem vestes
Como encadernação vistosa
Feita para iletrados, a mulher se enfeita
Mas ela é um livro místico e somente
A alguns a que tal graça se consente
É dado lê-la
Eu sou um, quem sabe…


Elegia XIX: Indo para a Cama

Vem, oh senhora, vem, que ócios não me permito;
Fico agitado toda vez que não me agito.
Quando o inimigo ao inimigo espreita e escuta,
Mais se cansa da espera que da própria luta.
Tira este cinto, cintilante anel celeste,
Que em torno a um mundo mais formoso dispuseste.
Desprende logo o peitoral onde lusis,
Que barra os olhos dos xeretas imbecis.
Despe-te, pois o carrilhão sonoro chama,
Dizendo a mim que a hora chegou de ir para a cama.
Abre o teu espartilho, que eu invejo em tudo:
Contudo, ele te abraça; e se mantém, contudo.
Tua saia, ao cair, revela tal primor,
Que é igual à sombra a se afastar do campo em flor.
Fora a coroa entrelaçada de metal;
Solta os cabelos, diadema natural.
Tira os sapatos, e, sem medo, ora te avia
Ao sacrário do amor, à cama tão macia.
Com essas vestes cândidas, do céu amigo
Os anjos vinham. Anjo meu, trazes contigo
Um paraíso igual ao de Maomé; e embora
Haja espíritos maus também de branco, agora
Sabe-se bem qual anjo é mau, e o bom qual é:
Um deixa em pé os cabelos, o outro a carne em pé.

Concede uma licença à minha mão errante,
Para ir ao meio, encima, embaixo, atrás, adiante.
Oh, minha América! Oh, meu novo continente,
Meu reino, a salvo porque um homem tens à frente.
Tenho aqui minhas minas, meu império aqui;
Que abençoado sou por descobrir a ti!
Este acordo liberta a quem ele segura;
Onde coloco a mão, eu deixo a assinatura.

Nudez completa, da alegria o cerne e a polpa!
Como a alma sai do corpo, o corpo sai da roupa
Para o prazer total. A jóia da mulher
E maçã de Atalanta, que sua dona quer
Lançar aos tolos, a que, vendo a gema bela,
Pensem sequiosos no que é dela, e não mais nela.
Como pintura, ou capa de volume, feita
Visando aos leigos, a mulher também se enfeita;
Mas é obra mística, e seu tema se explicita
Somente àqueles a que a graça nobilita,
Como nós. Sendo assim, que eu te conheça inteira;
Sem pejo vem, e, como diante da parteira,
Mostra-te a mim. Atira longe a vestimenta:
Para a inocência punição não se apresenta.

Que esperas? Estou nu. . . e as horas se consomem.
Mais cobertura tu desejas do que um homem?

A PULGA

Nota esta pulga, e nota, através dela,
Que o que me negas é uma bagatela;
Tendo sugado a mim, e a ti depois,
Nela se mescla o sangue de nós dois;
Sabes que isso não pode ser chamado
Defloração, vergonha, nem pecado;
Ela, no entanto, rude e ousada,
De sangue duplo se deforma empanturrada,
E, perto disso, o que desejo, ai! não é nada.
Pára! Três vidas poupa este momento,
Onde houve quase… oh, mais que um casamento.
Somos a pulga, e a nós ela é perfeito
Templo de núpcias e de núpcias leito;
Contra ti e teus pais, a união se deu
Nesse claustro murado em vivo breu.
Matando-me pela honradez,
Praticarás o suicídio a uma só vez,
E o sacrilégio,
três pecados pelos três.
De púrpura manchaste, sem demência,
As unhas com o sangue da inocência?
Essa pulga seria tão daninha,
Só por te haver sugado uma gotinha?
Porém, exultas porque após tal morte
Nenhum de nós se mostra menos forte.
Bem, vê como o temor é ruim;
Perderás tanto de honra ao vires para mim.
Quanto de vida porque a pulga teve fim.

7 comentários sobre “John Donne – Elegia

  1. Gostei do site e gostaria muito si vc pudesse enviar para o meu e-mail um artigo que fale sobre sua vida e sua obra e sobre a sua relação nos dias de hoje.
    Ficarei muito grato pela ajuda.

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  2. Gostaria de tirar uma dúvida, a esposa de Jhon Donne não teria 12 filhos, pela idade acho inviável que ela tenha tido 20 filhos, pelo que estudei eles tiveram um filho por ano, houve algum caso de gêmeos? Por favor estou com essa dúvida serão 12 ou 20 filhos?

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  3. Muito provavelmente foi cometido um erro de tradução e desatenção quando da produção do artigo. Entretanto, a fonte consultada indica que tiveram vinte filhos, mesmo que tenha se casado aos 17 e falecido aos 33, quando deu à luz ao que seria o vigésimo filho do casal.

    Como o número de natimortos era bastante elevado à época, talvez a contagem de filhos chegue a incluí-los.

    Imagino que a sua dúvida esteja na seguinte frase:
    “Since Anne Donne had a baby almost every year, this was a very generous gesture”.

    Não foi observada qualquer menção a gêmeos.

    Obrigado pela visita e também pela observação.

    Abraço.

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  4. Olá!!! Eu adorei a visita ao seu site e ainda mais por conhecer um pouco da vida e obra de John Donne, fazendo crescer em mim, mais interesse em pesquisar este gênio inglês. Muitíssima obrigada. Muita paz!

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  5. Parabéns pelo site! Lembro-me que interpretamos uma canção de amor sobre um poema de John Donne na faculdade de Música…fiquei emocionado às lágrimas durante o canto. Pena ter perdido a partitura. A música renascentista inglesa me atrai muito. Teve John Donne alguma habilidade musical?

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  6. Marco,
    Muito obrigado pela visita e pelas palavras. Quanto ao fato de John Donne ter tido alguma habilidade musical, não posso informar ao certo. Porém, como ele foi deão, imagino que tenha tido ao menos alguma instrução musical.

    Abraços.

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