Não tem tradução

The Rosetta Stone in the British Museum © Bettmann/CORBIS

A nossa imprensa foi responsável por transformar o nobre esporte bretão em algo mais palatável lingüisticamente para nós e, assim, nos tornamos o país do futebol (football). Não sabe como isto se deu? Por acaso você sabe quem foi o center forward (atacante) de seu team (time), que durante o último match (jogo) passou pelo back (zagueiro) do club (clube) adversário e este cometeu foul (falta) quando ele marcaria um goal (gol), tendo o goalkeeper (goleiro) já fora do lance, jogando a bola pela linha de fundo e o referee (juiz) marcou corner (escanteio)?

O povo também dá seu jeito quando não entende, mas o som do que se ouve dito em outra língua pode ser transformado para algo pronunciável e, certamente, compreensível. Por exemplo, Maxambomba, um termo classificado como brasileirismo, era uma pequena locomotiva que puxava vagões de dois andares com cabine sem coberta para os maquinistas e vem de machine bomb, pois quem implantou as ferrovias e os maquinários no Brasil foram empresas inglesas. No Rio de Janeiro, a cidade de Nova Iguaçu, inicialmente também recebia o nome de Maxambomba justamente por este motivo. Isto para não falar do brasileirismo Tirampa, que veio da música Sex Machine, do James Brown, quando o pessoal dos bailes de subúrbio não entendia que ele gritava GET UP.

Isto não é uma crítica. É uma observação. O que não se entende, pelo menos eu não entendo, é o uso de estrangeirismos na linguagem quando podemos ter alguma palavra similar. Lógico que a norma vem do uso como, por exemplo, o uso da palavra vitrine, um galicismo, em vez de vitrina. Ora, todos nós usamos vitrine e seguimos em frente. Caso paracido há em Portugal, onde as telas da televisão, do cinema e também a do monitor de um computador são conhecidas como écran (outro galicismo). É estranho ver um texto escrito por alguém e a cada cinco ou seis palavras surgir um termo em inglês, que tem o equivalente em português e que é comumente usado, como se isto conferisse não só maior sabedoria mas também um ar moderninho. Muito provavelmente alguém vai dizer: Ah, mas você escreve site quando quer dizer que alguém tem um página na Internet e vai fazer um link pra chegar até lá. Tudo bem, temos equivalentes mas que ainda não são usados para denominar que alguém tem um sítio ou página, como quiserem, na Internet e será feita uma ligação ou encadeamento, como quiserem, para lá.

Há quem diga que até mesmo a praga do gerundismo tenha nascido da tradução de manuais e livros em Inglês. No desligamento de seu computador também surge esta praga diante de nossos olhos “O Windows está sendo desligado”.

A invenção do cinema falado foi um marco de caráter mundial como se sabe. Aqui no Brasil a chegada desta novidade, lá pelos idos da década de 1930, alguns anos após a exibição do primeiro filme sonorizado, O Cantor de Jazz (The Jazz Singer), protagonizado por Al Jolson, foi que a nossa língua portuguesa passou a sofrer maiores influências e afluências de anglicismos superando ou até mesmo bloqueando a chegada de novos galicismos. Isto tem um caráter cultural e econômico, devido ao crescimento contínuo da economia do grande irmão do norte.

Entre meados do século XIX até um pouco antes da Segunda Grande Guerra podemos dizer que o Brasil era um país francófilo. Para isto, basta ver um pouco da arquitetura do Rio de Janeiro, a então capital, do início do século XX para comprovar. Os prédios da Biblioteca Nacional e do Teatro Municipal são exemplos perfeitos disto, pois foram baseados em construções francesas. Mas, com o advento das novas tecnologias de entretenimento como a gravação de discos e, principalmente o cinema fomos lentamente nos tornando, digamos, mais ligados à cultura de língua inglesa.

Como nossos compositores que também eram cronistas sociais em suas músicas e estavam ligados ao momento em que viviam, nos deram saborosíssimos exemplos de crítica bem-humorada destas influências. Temos, então, Assis Valente e Noel Rosa que, em 1932 e 1933, respectivamente, lançaram dois sambas que tratavam deste fato. Tem Francesa no Morro, o primeiro, era bastante jocoso e falava num francês macarrônico que não era complicado de entender. O segundo, Não Tem Tradução, de Noel Rosa, já fazia uma crítica a “essa gente que tem a mania da exibição”, identificando certo esnobismo por parte dos nativos no uso de expressões estrangeiras querendo, assim, destacar-se do restante da plebe ignara.

O tempo passou e a coisa não mudou muito. Aí vieram João Bosco e Aldir Blanc que compuseram Prêt-à-porter de Tafetá, na qual usam e abusam de palavras em francês misturando-as com as nossas que são oxítonas, quer dizer, tonicidade na última sílaba. E um pouco mais adiante, Zeca Pagodinho e Zeca Baleiro gravaram o sensacional Samba do Aprroach, em que termos da língua inglesa fazem complemento ao sentido das frases da música.

Vamos nos deliciar com esta seleção musical?

Recanto Galeria03

Você pode ouvir esta seleção no Recanto das Palavras – Galeria
Ou direto no seu computador copiando o endereço abaixo:
http://n90.mediamaster.com:8000/plist/3000130218/jadc01
Agora, as letras das músicas:

Tem Francesa no Morro (Assis Valente)
Donê muá si vu plé lonér de dancê aveque muá
Dance Ioiô
Dance Iaiá

Si vu frequenté macumbe entrê na virada e fini por sambá
Dance Ioiô
Dance Iaiá

Vian
Petite francesa
Dancê le classique
Em cime de mesa

Quand la dance comece on dance ici on dance aculá
Dance Ioiô
Dance Iaiá

Si vu nê vê pá dancê, pardon mon cherri, adiê, je me vá
Dance Ioiô
Dance Iaiá

Não Tem Tradução (Noel Rosa)
O cinema falado é o grande culpado da transformação
Dessa gente que pensa que um barracão prende mais que o xadrez
Lá no morro, seu eu fizer uma falseta
A Risoleta desiste logo do francês e do inglês
A gíria que o nosso morro criou
Bem cedo a cidade aceitou e usou
Mais tarde o malandro deixou de sambar, dando pinote
Na gafieira dançar o Fox-Trote
Essa gente hoje em dia que tem a mania da exibição
Não entende que o samba não tem tradução no idioma francês
Tudo aquilo que o malandro pronuncia
Com voz macia é brasileiro, já passou de português
Amor lá no morro é amor pra chuchu
As rimas no samba não são I love you
E esse negócio de alô, alô boy e alô Johnny
Só pode ser conversa de telefone.

Preta-Porter de Tafetá (João Bosco e Aldir Blanc)
Pagode em Cocotá
Vi a nega rebolá
Num preta-porter de tafetá
Beijei meu patuá
Ói, sambá, Oi, ulalá
Mé carrefour, o randevú vai começar

Além de me empurrá
“Kes que sê, tamanduá?
Purquá jé suí du zanzibar”

Aí, eu me criei: pás de bafo, mon bombom
Pra que zangar?
Sou primo do Villegagon
Voalá e çavá, patati, patatá
Boulevar, saravá, sou da Praça Mauá
Dendê, matinê, pas-de-dê, meu petí comitê, bambolê
Encaçapo você.

Taí, seu Mitterrand
Marcamos pra amanhã em Paquetá
Num flamboyant em fleur
Onde eu vou ter colher.

Pompadú? Zulu
Manjei toa bocú!…

Samba do Approach (Zeca Baleiro)
Venha provar meu brunch
Saiba que eu tenho approach
Na hora do lunch
Eu ando de ferryboat…(2x)

Eu tenho savoir-faire
Meu temperamento é light
Minha casa é hi-tec
Toda hora rola um insight
Já fui fã do jethro tull
Hoje me amarro no Slash
Minha vida agora é cool
Meu passado é que foi trash…

Venha provar meu brunch
Saiba que eu tenho approach
Na hora do lunch
Eu ando de ferryboat…(2x)

Fica ligado no link
Que eu vou confessar my love
Depois do décimo drink
Só um bom e velho engov
Eu tirei o meu green card
E fui prá Miami Beach
Posso não ser pop-star
Mas já sou um nouveau riche…

Venha provar meu brunch
Saiba que eu tenho approach
Na hora do lunch
Eu ando de ferryboat…(2x)

Eu tenho sex-appeal
Saca só meu background
Veloz como Damon Hill
Tenaz como Fittipaldi
Não dispenso um happy end
Quero jogar no dream team
De dia um macho man
E de noite, drag queen…

Venha provar meu brunch
Saiba que eu tenho approach
Na hora do lunch
Eu ando de ferryboat…(7x)

* A gravura que ilustra este artigo chama-se “A Pedra de Rosetta em Exposição no British Museum. ₢ Corbis

7 comentários sobre “Não tem tradução

  1. O “Tem Francesa no Morro” eu ouvi na voz de Marília Pêra, ainda não tinha visto outra pessoa que o conhecesse, hehehe.

    A listinha do futebol:

    Back – Meio zagueiro, no interior do Brasil chamava-se “beque”;
    Ball – Bola;
    Captain – Capitão;
    Center-foward – Centroavante;
    Corner – Escanteio;
    Dribling – Finta, drible;
    Defense – Defesa;
    Draw – Empate;
    Foul – Falta;
    Free-kick – Tiro livre;
    Full back – Zagueiro;
    Goal – Gol;
    Goalkeeper – Goleiro;
    Goal-kick – Tiro de meta;
    Goal-line – Linha de fundo;
    Goal-net – Rede;
    Ground – Campo;
    Hacking – Pontapé no adversário;
    Handling – Toque proposital com a mão;
    Inside – Meia armador;
    Kick-off – Pontapé inicial;
    Linesman – Auxiliar, bandeirinha;
    Marking – Marcador;
    Match – Jogo, partida;
    Offside – Impedimento;
    Passing – Passe;
    Penalty – Penalidade máxima;
    Referee – Árbitro;
    Return-match – Jogo de revanche;
    Score – Resultado;
    Shoot – Tiro, chute, finalização;
    Shooter – Chutador, finalizador;
    Tackle – Ataque;
    Team – Time;
    Throw-in – Arremesso lateral;
    Toss – Sorte, sorteio, escolha;
    Time – Tempo;
    Training – Treino;
    Volley – Chutar de voleio;
    Wing – Ala.

    Curtir

Deixe um comentário